Deixa-te levar pelo menino que foste (J. Saramago)
Ser mãe, pai ou ter uma criança por perto é relembrar aquele olhar. O olhar que um dia também foi nosso. Despido de vícios, desconfianças e pré-julgamentos. Olhar aberto e sedento por captar o mundo.
A criança é movida pela curiosidade e interessa-se por tudo o que a cerca. Cada passo traz novas descobertas e novos fascínios. As formigas, os gravetos, o pó que reluz ao sol. A tampa do pote, a dobradiça, o algodão. O mínimo, o minúsculo, tudo aquilo que se tornou opaco para o olhar adulto. Coisas prosaicas, pequenos tesouros.
Quem escreve para crianças esforça-se por resgatar este olhar. Fixa a tela em branco enquanto procura diluir a razão arrogante que orienta os dias em boas doses do encantamento simples, direto e puro do olhar infantil. Simples porque sem frescuras, direto porque sem rodeios, puro porque livre de preconceito.
Recuperar o olhar de criança, porém, não é fácil. Mas alguns escritores e poetas parecem simplesmente nunca tê-lo perdido. É o caso de Manoel de Barros e de Mario Quintana, para ficar em dois exemplos bastante conhecidos. Em “Lili inventa o mundo”, Quintana nos brindou com maravilhas do olhar infantil, mostrando que tinha muito viva dentro de si a criança que um dia fora:
“O hipopótamo é um bruto sapatão afogado”.
“O gato é preguiçoso como uma segunda-feira”.
“As pulgas saltam tanto porque também têm pulgas”.
“A esperança é um urubu pintado de verde”.
E talvez a mais linda delas:
“Sonhar é acordar-se para dentro”.
Nessa busca do escritor pelo olhar infantil, é precioso o pequeno volume de Javier Naranjo, “Casa das estrelas: o universo contado pelas crianças”, lindamente ilustrado por Lara Sabatier e editado no Brasil pela Foz.
Naranjo, escritor e professor colombiano do ensino primário, dá voz aos seus alunos, compartilhando conosco as suas palavras e o modo como as crianças definiram, em atividades de sala de aula, não apenas coisas tangíveis, mas também sentimentos e conceitos mais abstratos. Palavras e definições que revelam o olhar infantil sobre o amor, o ódio, o sol, a escuridão, o tempo, a morte, a família, a mãe, o pai, o louco e até mesmo o poeta.
O poeta é “alguém que descobriu algo no mundo” para Nelson, de 9 anos; é “qualquer pessoa que voa pelo ar”, para Sandra, de 7. A pessoa é uma coisa humana, a guerra é ficar com a vida uma bagunça. Água é a transparência que se pode tomar. Vazio é sem ninguém dentro. Ódio é quando não queremos fazer o que mandam. Medo é quando chega alguém lá em casa e eu levanto para ver quem é. Morte é uma coisa que não volta. Tempo é esperar os outros.
As palavras das crianças trazidas pelo livro emocionam, nos fazem rir e chorar. Talvez pela saudade da criança que fomos, talvez pela vontade de simplesmente resgatar aquele olhar. Deixar-se encantar pelo mundo, apesar de tudo: dos horrores vários, do tédio, da falta de sentido. Redescobrir a alegria de explorar e conhecer, de sentir com os dedos e com a alma.
Fundir o nosso olhar cotidiano com o jeito de ver o mundo das crianças não é uma experiência importante apenas para quem escreve literatura infantil, mas pode ser para lá de interessante e fonte de prazer para qualquer pessoa, ajudando a espanar o pó das nossas retinas, renovando o olhar e criando novos significados.
Letícia Möller
Texto originalmente publicado em minha coluna no
Portal Artistas Gaúchos, em fevereiro de 2016.